CAPÍTULO VII - A queda de Otávio
A ausência de Aniceto deu ensejo à palestras
interessantes.
Formaram-se grupos de conversação amiga.
Impressionado com as senhoras que haviam solicitado
providências para Otávio, pedi a Vicente me apresentasse a elas, não que me
movesse curiosidade menos digna, mas desejo de alcançar novos valores
educativos sobre a tarefa mediúnica, que a palavra de Telésforo me fizera
sentir em tons diferentes.
O amigo atendeu de boamente.
Em breves momentos, não me achava tão só à frente
das irmãs Isaura e Isabel, mas do próprio Otávio, um pálido senhor que
aparentava quarenta anos.
— Também sou principiante aqui — expliquei — e
minha condição é a do médico falido nos deveres que o Senhor lhe confiou.
Otávio sorriu e respondeu:
— Possivelmente, o meu amigo terá a seu favor o
fato de haver ignorado as verdades eternas, no mundo. O mesmo não ocorre
comigo, a demais; não desconhecia o roteiro certo, que o Pai me designava para
as lutas na Terra. Não possuía títulos oficializados de competência entretanto,
dispunha de considerável cultura evangélica, coisa que, para a vida eterna, é
de maior importância que a cultura intelectual, simplesmente considerada. Tive
amigos generosos do plano superior, que se faziam visíveis aos meus olhos,
recebi mensagens repletas de amor e sabedoria e, no entanto, caí mesmo assim,
obedecendo à imprudência e à vaidade.
As observações de Otávio impressionava-nos
vivamente. Quando no mundo, eu não tivera contacto especial com as escolas
espiritistas e experimentava certa dificuldade para compreender tudo quanto ele
desejava dizer.
— Ignorava a extensão das responsabilidades
mediúnicas, respondi.
— As tarefas espirituais, tornou o interlocutor,
algo acabrunhado, ocupam-se de interesses eternos e da grande enormidade de
minha falta. Os mordomos de bens da alma estão investidos de responsabilidades
pesadíssimas. Os estudiosos, os crentes, os simpatizantes no campo da fé, podem
alegar ignorância e inibição; todavia, os sacerdotes não têm desculpa.
É o mesmo que se verifica na tarefa mediúnica. Os
aprendizes ou beneficiários, nos templos da Revelação nova, podem referir-se a
determinados impedimentos; mas o missionário é obrigado a caminhar com um
patrimônio de certezas tais, que coisa alguma o exonera das culpas adquiridas.
— Depois de contrair dívidas enormes na esfera
carnal, noutro tempo, vim bater às portas de “Nosso Lar”, sendo atendido por
irmãos dedicados, que se revelaram incansáveis para comigo. Preparei-me, então,
durante trinta anos consecutivos, para voltar a Terra em tarefa mediúnica,
desejoso de saldar minhas contas e elevar-me alguma coisa. Não faltaram lições
verdadeiramente sublimes, nem estímulos santos ao meu coração imperfeito. O
Ministério da Comunicação favoreceu-me com todas as facilidades e, sobretudo,
seis entidades amigas movimentaram os maiores recursos em benefício do meu
êxito. Técnicos do Auxílio acompanharam-me a Terra, nas vésperas do meu
renascimento, entregando-me um corpo físico rigorosamente sadio. Segundo a
magnanimidade dos meus benfeitores daqui, ser-me-ia concedido certo trabalho de
relevo, na esfera de consolação às criaturas. Permaneceria junto das falanges
de colaboradores encarregados do Brasil, animando-lhes os esforços e atendendo
a irmãos outros, ignorantes, perturbados ou infelizes. O matrimônio não deveria
entrar na linha de minhas cogitações, não que o casamento possa colidir com o
exercício da mediunidade, mas porque meu caso particular assim o exigia. Nada
obstante, solteiro, deveria receber, aos vinte anos, os seis amigos que muito
trabalharam por mim, em “Nosso Lar”, os quais chegariam ao meu círculo como
órfãos. Meu débito para com essas entidades tornou-se muito grande e a
providência não só constituiria agradável resgate para mim, como também
garantia de triunfo pelo serviço de assistência a elas, o que me preservaria o
coração de leviandades e vacilações, porquanto, o ganha-pão laborioso me
compeliria a não aceder a sugestões inferiores nos domínios do sexo e das
ambições incontidas. Ficou também assentado que minhas atividades novas
começariam com muitos sacrifícios, para que o possível carinho de outrem não
amolecesse a minha fibra de realização, e para que se não escravizasse, minha
tarefa a situações caprichosas do mundo, distantes dos desígnios de Jesus, e,
sobretudo, para que fosse mantida a minha impessoalidade do serviço. Mais
tarde, então, com o correr dos anos de edificação, me enviariam de “Nosso Lar”
socorros materiais, cada vez maiores, à medida que fosse testemunhando renúncia
de mim mesmo, desprendimento das posses efêmeras, desinteresse pela remuneração
dos sentidos, de maneira a intensificar, progressivamente a semeadura de amor
confiada às minhas mãos.
Tudo combinado, voltei, não só prometendo
fidelidade aos meus instrutores, como também hipotecando a certeza do meu
devotamento as seis entidades amigas, a quem muito devo até agora.
Otávio, nesse momento, fez uma pausa mais longa,
suspirou fundamente, e prosseguiu:
— Mas, ai de mim, que olvidei todos os
compromissos! Os benfeitores de “Nosso Lar” localizaram-me ao lado de
verdadeira serva de Jesus. Minha mãe era espiritista cristã desde moça, não
obstante as tendências morais de meu pai, que era, todavia um homem de bem. Aos
treze anos fiquei órfão de mãe e, aos quinze, vieram para mim os primeiros
chamados da esfera Superior. Por essa ocasião, meu pai contraiu segundas
núpcias, e, apesar da bondade e operação que a madrasta me oferecia, eu me
colocava num plano de falsa superioridade a respeito dela. Então, minha
genitora endereçou do invisível, apelos sagrados ao meu coração. Eu vivia
revoltado, entre queixas e lamentações descabíveis. Meus parentes conduziram-me
a um grupo espírita de excelente orientação evangélica onde minhas faculdades
poderiam ser postas a serviço dos necessitados e sofredores; entretanto,
faltava-me qualidades de trabalhador e companheiro fiel. Minha negação em
matéria de confiança nos orientadores espirituais e acentuado pendor para a
crítica dos atos alheios compeliam-me a desagradável estacionamento. Os
beneméritos amigos do invisível estimulavam ao serviço, mas eu duvidava deles
com a minha vaidade doente. Como prosseguissem os apelos sagrados, por mim
interpretados como alucinações, procurei um médico que me aconselhou
experiências sexuais. Completara, então, dezenove anos e entreguei-me
desenfreadamente ao abuso de faculdades sublimes. Desejava conciliar, a força,
o prazer delituoso e o dever espiritual, alheando-me, cada vez mais, dos
ensinos evangélicos que os amigos da esfera superior nos ministravam.
Tinha
pouco mais de vinte anos, quando meu pai foi arrebatado pela morte. Com a
triste ocorrência, ficavam na orfandade seis crianças desfavorecidas, porquanto
minha madrasta, ao se consorciar com meu genitor, lhe trouxera para a tutela
três pequeninos. Em vão implorou-me socorro a pobre viúva. Nunca me dignei
aceitar os encargos redentores que me estavam destinados. Após dois anos de
segunda viuvez, minha desventurada madrasta foi recolhida a um leprosário. Afastei-me, então, dos pequenos órfãos, tomado de
horror. Abandonei-os definitivamente, sem refletir que lançava meus credores
generosos, de “Nosso Lar”, a destino incerto. Em seguida, dando largas a
ociosidade, com uma ação menos digna e fui obrigado a casar-me pela violência.
Mesmo assim, porém, persistiam os chamados do invisível, revelando-me a
inesgotável misericórdia do Altíssimo. Contudo, à medida que olvidava meus
deveres, toda tentativa de realização espiritual figurava-se-me mais difícil. E
continuou a tragédia que inventei para meu próprio tormento. A esposa a que me
ligara, tão somente por apetites inconfessáveis, era criatura muito inferior à
minha condição espiritual e atraiu uma entidade monstruosa, em ligação com ela,
para tomar o papel de meu filho. Releguei à rua seis carinhosas crianças, cuja
convivência concorreria decisivamente para minha segurança moral, mas a
companheira e o filho, ao que me pareceu, incumbiram-se da vingança. Atormentaram-me ambos, até ao fim da existência, quando para aqui regressei.
Mal tendo completado quarenta anos, roído pela sífilis, pelo álcool e pelos
desgostos... sem nada haver feito para meu futuro eterno... Sem construir coisa
alguma no terreno do bem...
Enxugou os olhos úmidos e concluiu;
— Como vê, realizei todos os meus condenáveis desejos, menos os desejos de
Deus. Foi por isso que fali, agravando
antigos débitos.
Nesse instante, calou-se como se alguma coisa
invisível lhe viesse a garganta.
Abracei-o com simpatia fraternal, ansioso de
proporcionar estímulo ao coração, mas Dona Isaura aproximou-se mais, acariciou-lhe a fronte e
falou:
— Não chores, filho! Jesus não nos falta com a
bênção do tempo. Tem calma e coragem..
Com carinho, meditei na Bondade Divina, que faz eco
no amor de mãe, mesmo nas regiões de além morte.